sábado, 24 de janeiro de 2009

À sombra dos ipês floridos




A agonia começou no ano passado, na Feira do Livro, época em que Porto Alegre se transforma no melhor lugar do mundo. Ele percorria as barracas multifestivas, procurando o ouro dos balaios generosos e enchendo de leitura os meses seguintes, quando a viu. Foi apenas um relance, segundo menor que o segundo, a sacolinha plástica recheada de livros desaparecendo rápida no meio da multidão dominical , mas naquele instante único e fatal imaginou que aquela era a mulher de sua vida. Conseguiu enxergá-la ainda outra vez, esticando o pescoço, cabeça que sumia em meio às outras cabeças, o cheiro bom da pele adivinhado desde longe, apenas para dar-se conta, desesperado, que, a partir de então, não tê-la seria sofrimento. A mulher cheia de livros, pensou – o paraíso pode ser perto.

Perambulou pela Feira durante todos os dias restantes, olhando menos aos livros do que para os lados, apenas na ânsia de redescobri-la. Vasculhou barracas com atenção esperançosa às mãos próximas. Freqüentou seminários e oficinas, apenas para buscar os rostos da platéia. Sentou-se sozinho no bar, cafés e mais cafés, procurando todas as mesas na certeza triste de que nunca era. Estacionou em filas de autógrafos imaginando o que ela leria naquele instante, a mulher com quem desejava dividir a vida e os livros para sempre. Nada: a mulher perfeita decerto estava perdida no meio de tantos outros.

A Feira terminou mas sua busca prosseguiu. Em livrarias e sebos, nas sessões de autógrafos e lançamentos, em palestras e seminários, nos cafés e nos saraus, ele tentava a mulher – aquela vista de olhos, sacola abraçada de livros, que havia transformado a sua vida nesta busca agoniada. Quando a encontrasse, pensou, falariam sobre livros e seriam felizes.

Encontrou-a, por fim, no sábado passado, mal a Feira deste ano começava a se espalhar pela Alfândega. Estremeceu quando viu o mesmo jeito, a mesma sacola cheia de livros, os mesmos cabelos, o mesmo cheiro adivinhado que se haviam grudado à sua memória neste meses todos, e soube, na sua timidez de óculos, que não agüentaria outro ano.

Ela escolhia livros num balaio e ele, abrindo caminho a sutis empurrões, ensaiou outra vez a frase que, tinha decidido, seria a chave para abrir sua nova vida. Quando chegou ao seu lado, ela sorriu – e o sorriso era aquele imaginado.

“Maravilha esta Feira, não é? Dá para comprar livros para o ano inteiro!” – comentou ele, cheio de coragem.

“É, sim.” – concordou ela, e sua voz tinha a cor dos ipês e jacarandás da praça. – “Eu aproveito para comprar um monte de livros para a minha sobrinha” – depois, a voz baixa como se cometesse um pecado dentro da igreja – “Eu mesma não sou muito de leitura.”

Ele sentiu como se o chão lhe faltasse, mas ainda conseguiu reunir forças para sorrir, como se entendesse. Depois, passos de volta à vida mesma, foi garimpar ofertas em outra barraca.

sábado, 10 de janeiro de 2009

O programa que se preocupa com você




- ... e seguimos com o programa Elvis Reinaldo, o programa que se preocupa com você, meu amigo, meu irmão, meu querido ouvinte que, com seu rádio ligado todo o dia, faz da nossa emissora uma campeã de seus carinhos e da audiência. E agora é a hora do Telefonema Premiado Elvis Reinaldo. O ouvinte premiado vai ganhar um fabuloso jogo de panelas, é só responder qual o nome do nosso programa! Já estamos completando a ligação, vamos ver... Alô?

- Teresa?

- Não, amigo, não é a Teresa. Aqui é Elvis Reinaldo, o programa que se preocupa com você. E nós queremos lhe fazer uma pergunta que pode lhe render um fantástico jogo de panelas...

- Desculpa, eu pensei que fosse a Teresa. Só atendi porque pensei que era a Teresa.

- Mas não é. E a pergunta premiada é...

- É que a Teresa foi embora, e eu estou aqui desesperado, com uma faca na mão, sem saber bem o que fazer. E preciso falar com a Teresa!

- Claro, claro. Mas isso depois do amigo responder a pergunta premiada de Elvis Reinaldo, o programa que se preocupa com você!

- Teresa! Se você estiver me ouvindo, me liga! Eu tou com uma faca na mão, pronto para qualquer coisa...

- A Teresa vai ligar, meu amigo. Mas agora é hora de seguir com o programa, respondendo a pergunta premiada!

- Volta, Teresa. Aquela história com a Dilene não foi nada...

- Vejam só, ouvintes, que felizardo é o nosso amigo! Vai escolher com quem partilhar o extraordinário jogo de panelas que pode ganhar do nosso programa, a Teresa ou a Dilene. É ou não é um homem de sorte?

- A Dilene não tem nada a ver, Teresa! Você que é a mulher da minha vida!

- Que beleza, a declaração de amor ao vivo! Mas agora, amigo, hora de responder a pergunta porque nosso tempo já está estourando!...

- Eu tou com a faca na mão, Teresa! Me liga ou eu me mato!

- Mas não sem antes responder a pergunta premiada, que pode mudar sua vida, com o colossal jogo de panelas que você pode ganhar! É só responder certo a nossa pergunta: qual o nome do programa que você está ouvindo agora? Vamos lá, então! Alô? Alô? ...Não está respondendo...deve ter caído a ligação. Mas tudo bem, segue o programa. Se o ouvinte não quer responder, ele não é obrigado. Este é um programa democrático. Afinal, este é o programa Elvis Reinaldo, o programa que se preocupa com você! E vamos para a nossa próxima ligação...

domingo, 5 de outubro de 2008

O sonho dentro do sonho



Marisia sempre teve o dom de sonhar bem. Seus sonhos têm começo, meio e fim, as cores claras e belas, têm nomes e lugares exatos, têm rumo e destino, dosam tristeza e alegria nos seus tamanhos certos e têm sempre a generosidade desabrida de estar vivos na hora em que Marisia acorda.

E talvez seja isso o que mais a fere: acordar destes sonhos multicores e tê-los próximos e doloridos durante todas as solitárias horas de seus dias em preto-e-branco.

Então que, numa noite qualquer em que já se preparava para dormir, o copo de água acomodado no criado-mudo, Marisia teve a idéia de salvar seus dias: tentaria, no sonho, encontrar o par perfeito.

O par perfeito chamava-se Osvaldo e encantou ainda mais o sonho de Marisia. Esta, quando acordou, descobriu que era feliz: sabendo escolher os motivos de seus sonhos, seus dias monótonos serviam apenas como intervalos às noites coloridas.

Atravessou a claridade do dia aos sobressaltos, lembrando de Osvaldo a cada minuto e torcendo para que a noite e os sonhos chegassem logo. À hora de dormir, sorrindo em sua camisola nova, lembrou-se de ordenar a si mesma que sonhasse novamente com o par perfeito.

Osvaldo esperava por ela à beira do sonho, abraço estendido. Percorreram a noite como se houvessem nascido amantes e despediram-se às novas luzes da manhã, apenas quando Marisia já não conseguia mais sustentar o sono. À hora exata em que acordou, ela ainda sentia em sua boca o peso quente dos lábios de Osvaldo.

Assim todos os últimos dias, as noites cada vez menos bastas à felicidade do par perfeito, sete horas de sono que pareciam duas, o despertador insensível interrompendo juras de amor, Marisia recomeçando todos os dias o sofrimento da longa espera.

Foi quando ela achou que era a hora de ficar para sempre com o amor de sua vida e decidiu sonhar que não acordava mais.
Desde então, ambos vivem no sonho de Marisia um idílio sem faltas. Até quando ela seguirá neste sono inacabável, ninguém sabe – mas, enquanto isso, os dois são felizes.